sábado, 18 de abril de 2020

Pernambuco Segundo Barleus

“Para elucidar a presente história dos feitos praticados e a dos que de futuro se praticarem nesta província será de vantagem indicar-lhes sucintamente a posição e os lugares, sobretudo por ser ali a residência tão luzida do Conde, sede do Conselho Político e do Supremo e a principal e mais freqüentada estação naval.

Pernambuco é uma das maiores colônias do Brasil, pois tem de costa, entre a foz do S. Francisco e a capitania de Itamaracá, 60 léguas. É propriedade do português Duarte de Albuquerque, em cujo nome a governava seu irmão Matias de Albuquerque, o qual viera para Olinda pouco antes de a tomarem os nossos. São onze as vilas e povoações habitadas por lusitanos. A primeira é a capital Olinda, à beira-mar, notável por belos edifícios e templos. O sítio, por amor das colinas que ela abrange no seu perímetro, é assaz acidentado, de sorte que dificilmente o poderia munir a indústria humana.

A segunda vila, antes povoação do que vila, é Iguaraçu mais distante do litoral, em frente a Itamaracá e a 5 léguas de Olinda. Habitaram-na outrora portugueses de condição mais humilde, que viviam das artes mecânicas. Caindo, porém, Olinda em nosso poder, até os seus mais opulentos moradores passaram para Iguaraçu. Tomaram-na os nossos a 1º de maio de 1632, incendiando-a e saqueando-a.

A terceira vila é o já mencionado Recife.

A quarta é Muribeca, mais no sertão e mais para o sul, a 5 léguas do Recife.

A quinta é Sto. Antônio, a 7 ou 8 léguas do Recife, no sul, perto do Cabo de Sto. Agostinho.

A sexta é S. Miguel de Ipojuca, muito populosa, a 10 léguas do Recife. Tem 13 engenhos, que produzem anualmente grande quantidade de açúcar. Está situada às margens do rio do mesmo nome, o qual entra no mar junto ao lado meridional do Cabo de Sto. Agostinho.

A sétima é a povoação de Serinhaém, muito ampla e amena. Possui 12 engenhos, produzindo cada um seis ou sete mil arrobas de açúcar (1 arroba pesa 27 ou 28 libras nossas). Dista 13 léguas do Recife.

A oitava é S. Gonçalo do Una, a 20 léguas do Recife, com 5 engenhos.

A nona é Porto Calvo, a 25 léguas do Recife, tendo 7 a 8 engenhos. Aí fica a fortaleza da Povoação, célebre pela vitória de Maurício.

A décima é a povoação de Alagoas do Norte, a 40 léguas do Recife. A undécima é Alagoas do Sul, distante quase outras tantas.

Além destas localidades, há outras menores chamadas aldeias, onde vivem os índios.”


Gaspar Barleus, 1647, Amsterdam

HISTÓRIA DOS FEITOS RECENTEMENTE PRATICADOS
DURANTE OITO ANOS NO BRASIL E NOUTRAS PARTES
SOB O GOVERNO DO ILUSTRÍSSIMO JOÃO MAURÍCIO
CONDE DE NASSAU, ETC., ORA GOVERNADOR DE
WESEL, TENENTE-GENERAL DE CAVALARIA DAS
PROVÍNCIAS-UNIDAS SOB O PRÍNCIPE DE ORANGE

quinta-feira, 9 de abril de 2020

O Recife, Sim! Recife, Não!


Todo bom recifense diz “o Recife” e não “Recife”. Todo bom brasileiro de Pernambuco diz “o Recife” e não “Recife” como diz “o Brasil” e não “Brasil”, “o Rio” e não “Rio”.

O recifense diz “chegar ao Recife”, “vir para o Recife”, “sair do Recife”, “dentro do Recife”, “rumo ao Recife”, “voar sobre o Recife”. Quando é outro o modo da pessoa se referir ao Recife, o recifense conclui: é gente de fora.

O recifense está habituado a ver gente de fora desde os mais velhos dias do Brasil. É claro que essa gente de fora nem sempre tem sido gente amiga, mas, por vezes, corsária, pirata, conquistadora, exploradora. Estrangeiros houve que saquearam o Recife: um deles o inglês Lancaster, no século XVI. Outros que o dominaram, mudando-lhe o nome português para “Maurícia” em holandês. Dos franceses, alguns quiseram assenhorear-se do Recife.

O Recife é uma cidade sereia: tem encantos anfíbios a que muita gente de fora vem sucumbindo. Encantos de suas águas de mar a que se juntam as águas de rios. Encantos de suas frutas: dos seus cajus, das suas mangas, dos seus sapotis, dos seus abacates. Encanto das suas areias de praia e das sombras das suas árvores.

O maior dos seus conquistadores, o Conde Maurício de Nassau, terminou conquistado por esses encantos. Tanto que há quem pense ter sido sonho do ilustre alemão fundar no Brasil um principado, do qual o Recife teria sido a capital. Nassau, nesse caso, aqui teria permanecido. Com que resultado? Germanizando esta parte do Brasil? É pouco provável. É possível que ele, Nassau, viesse a se abrasileirar de tal modo em recifense, que até cor morena viesse a adquirir ao sol das praias do seu principado tropical. E o Brasil que conquistou Nassau foi principalmente o Recife. O Recife intransigentemente o Recife e não um mole, passivo, Recife.

Gilberto Freyre
O Recife, Sim! Recife, Não!
1960

segunda-feira, 6 de abril de 2020

O Arraial Novo do Bom Jesus


Após a invasão das tropas da Companhia das Índias Ocidentais a Pernambuco, Matias de Albuquerque tenta conter os invasores, primeiro em Olinda, no Rio Doce, e depois no Recife, mas consegue apenas atrasar o avanço inimigo. Dominados Olinda e sem meios para defender o porto, Recife, o comandante olindense manda queimar os armazéns de açúcar e afundar um navio para bloquear a entrada do porto, mas por fim, os neerlandeses, com efetivos e material bélico superiores, conquistam tudo.

Para centralizar a resistência e coordenar a guerra de emboscadas às tropas da WIC, Matias de Albuquerque constrói uma fortificação na propriedade de Antônio de Abreu, ao noroeste do Recife e próximo ao Rio Capibaribe, que passaria a ser chamada de Forte Real do Bom Jesus ou Arraial do Bom Jesus. Durante cinco anos esse bastião foi arregimentando moradores e combatentes que atacavam os destacamentos neerlandeses, principalmente os que se aventuravam fora dos fortes do Recife em busca de alimentos. No entanto, após um cerco de três meses e três dias, em 08 de junho de 1635, sem mais nenhum mantimento ou munição, o Arraial do Bom Jesus cai para as tropas do coronel Chrestofle Arciszewski. Na sequencia, os invasores conquistam o Forte de Nazaré, no Cabo de Santo Agostinho, ficando senhores dos principais pontos fortificados do Rio Grande ao centro sul de Pernambuco.

Dez anos depois, tem início a Insurreição Pernambucana para a expulsão dos holandeses do Nordeste brasileiro.  Em setembro de 1645 começa, no antigo Engenho São Tomé, depois Rotterdam, uma légua a oeste do Recife, a construção do Arraial Novo do Bom Jesus, sob a orientação do mestre de campo Dirck van Hoogstraten. Recebe oito canhões de bronze conquistados aos holandeses no Forte de Bom Sucesso do Porto Calvo. A fortificação de terra batida será concluída em cerca de três meses.

Em 07 de outubro de 1645 João Fernandes Vieira é aclamado governador de Pernambuco e comandante do exército de libertação, pelos membros mais importantes da capitania, no Arraial Novo. Essa tomada de decisão não foi submetida às autoridades do Governo Geral de Salvador nem ao Rei de Portugal. Ao raiar do dia 01 de janeiro de 1646 a artilharia do Novo Forte do Bom Jesus se fez ouvir no Recife. Em fevereiro do ano seguinte o almirante Jean Cornelis Lichthardt escreve relatório aos Estados Gerais dando conta da construção de um forte no engenho de Willem Bierboom, a uma légua do Recife.

Um ano depois, 20 de fevereiro de 1647, representantes de Olinda, Igarassu, Goiana, Sirinhaém e Paraíba, reunidos no Arraial Novo, mandam carta ao Rei D. João IV pedindo o envio de tropas para ajudar na guerra contra os holandeses e comprometendo-se a custear as despesas com tudo necessário para a libertação do Brasil dos invasores. Lembram que a luta dos portugueses contra os espanhóis para a confirmação da separação da Coroa Portuguesa da Espanha estava num estágio que permitia a liberação de parte do contingente para o Brasil.

Em 1648 tem lugar a primeira batalha dos Guararapes, inicio do fim da dominação holandesa no Brasil. No dia 16 de abril daquele ano, o mestre de campo general Francisco Barreto de Menezes, estacionado no Arraial Novo do Bom Jesus com suas tropas, recebe do governador-geral, Antônio Teles de Meneses, a confirmação de seu cargo de governador e comandante das tropas em Pernambuco.

Na noite do dia seguinte o coronel alemão Sigmund von Schkoppe desloca 4.500 homens das tropas da WIC do Recife, além de 300 índios Tapuias, marinheiros e os componentes do trem de guerra, até o Forte Prins Willem em Afogados. No mês anterior havia chegado ao Recife um comboio procedente da Holanda com 6.000 combatentes para romper o cerco imposto ao Recife pelos insurretos luso-brasileiros. O objetivo de Von Schkoppe é atacar Muribeca, cerca de três léguas ao sul do Recife e centro abastecedor de mantimentos do Arraial Novo do Bom Jesus. Deveriam também bloquear o acesso por terra ao Cabo de Santo Agostinho e seu porto.

Informado das manobras dos holandeses, o mestre de campo general Barreto de Meneses imagina que o ataque seria direcionado ao Arraial Novo do Bom Jesus, mas na tarde do dia 18 o veterano sargento-mor Antônio Dias Cardoso chega ao Arraial informando da direção da marcha dos holandeses. Barreto de Meneses convoca um conselho de guerra para decidir a linha de ação. Passa o comando da operação a Fernandes Vieira e Vidal de Negreiros muito mais experientes na região.

No dia 19 de abril de 1648 tem lugar a 1ª Batalha dos Guararapes nos montes de mesmo nome, onde um efetivo da WIC três vezes maior foi batido pelos luso-brasileiros. O coronel Schkoppe, gravemente ferido numa das pernas no início da luta, retorna ao Recife. Morreram no combate, além dos tenentes-coronéis neerlandeses Van Haus e Keerveer, cerca de 500 homens com mais 500 feridos. Pelos luso-brasileiros as baixas foram de 80 mortos e 400 feridos. Dentre os feridos, morre um mês depois no Arraial Novo, o mestre de campo Antônio Felipe Camarão (Poti), em consequência de ferimentos recebidos nos Guararapes. Pelos seus serviços na luta contra os holandeses havia recebido os títulos de Dom, Comendador da Ordem de Cristo e Governador-Geral dos Índios do Brasil. Foi enterrado inicialmente numa capela no próprio Arraial, e depois trasladado para a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, na Várzea.

Menos de um ano depois, 19 de fevereiro de 1649, ocorre a 2ª Batalha dos Guararapes nos mesmos morros do primeiro confronto. O exército da WIC, agora sob as ordens do coronel Johan van den Brinck, já que Schkoppe ainda convalescia do ferimento da última batalha, sai do Recife na noite do dia 17 e na tarde do dia seguinte ocupam posições nas partes altas dos Montes Guararapes. Por volta das 10h00 do dia 18 os luso-brasileiros no Arraial Novo tomam conhecimento da marcha dos mercenários da WIC. Posteriormente sabendo da direção da expedição aos Guararapes, o conselho de guerra resolve enfrentar os inimigos.

Os 2.600 homens do mestre de campo general Barreto de Menezes, saindo do Arraial Novo do Bom Jesus em marcha batida chegam ao cair da noite e ocupam o sopé noroeste. Os neerlandeses permanecem durante toda manhã do dia 19 em suas posições no alto dos montes, sofrendo com o forte calor e a falta d’água. O conselho de guerra decide abandonar o plano de atingir a Muribeca e que voltariam ao Recife. Às 15h00 os holandeses começam a descer os montes e a artilharia neerlandesa ataca os insurretos, mas é contida. Ao tentarem sair dos morros as formações da WIC são atacadas e procuram resistir, mas são batidas e fogem em confusão, sendo perseguidas pelas tropas luso-brasileiras.

Os holandeses deixam para trás grande quantidade de armas e equipamentos, inclusive sua artilharia. Entre os mortos do lado da WIC estão o coronel Van den Brinck e o vice-almirante Giesseling, num total de 1.500 baixas entre mortos e feridos. Nas tropas luso-brasileiras houve cerca de 100 mortos e 450 feridos.

Em janeiro de 1654, após apertado cerco ao Recife e Mauritsstad, os neerlandeses se rendem às forças luso-brasileiras. Com o final do conflito o Arraial Novo do Bom Jesus é desativado.  

Segundo o arqueólogo Marcos Albuquerque, o Forte Novo do Bom Jesus é uma das poucas fortificações em terra construídas no Brasil, cujos resquícios ainda se encontram aparentes. Está localizado na Av. do Forte, bairro do Cordeiro, e pode ser observado um obelisco de granito implantado pelo Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano em 1872, em sua parte mais elevada.