O Recife não é cidade duma só cor,
nem dum só cheiro, como muitas encontradas por Kipling¹ em suas viagens, que
depois as podia evocar admiravelmente num só adjetivo, expressão dum estado
sensorial. Longe disto. Por seu arranjo arquitetônico, pela tonalidade própria
de cada uma de suas ruas, o Recife é desconcertante, como unidade urbana,
impossível mesmo de caracterizar-se. Casas de todos os estilos. Contrastes
violentos nas cores gritantes das fachadas. Cidade feita de manchas locais
diferentes, não há por onde se possa apanhar na fisionomia das casas o tom
predominante da alma da cidade.
Quem diria que deste outro lado do
Atlântico, no Brasil, país de mestiços e bem nos trópicos, o viajante iria
topar com um espetáculo destes, logo no primeiro porto que o navio toca? Salta
o viajante do paquete², desce ao longo dos armazéns e desemboca mesmo na praça
monumental³. Cinco avenidas se abrindo em leque, com magníficos
estabelecimentos comerciais. Ruas largas, limpas, retas, com as filas inquebrantáveis
dos edifícios uniformemente solenes. Bancos, telégrafos, companhias de
vapores... Prédios asseados com um ar de disciplina e de riqueza. É verdade que
estas ruas são curtas, curtinhas mesmo, se acabando logo ali adiante na beira
do rio. Mas quando elas se acabam, lá vem as pontes lançadas elegantemente
sobre o Capibaribe. E depois outras praças: a da Independência e a da
República, com seus palácios e palacetes, do Governo, da Justiça, do Diário de
Pernambuco, todos feios, feiíssimos, mas também monumentais como grandes cidades europeias.
As pontes nos trazem ao bairro de
Santo Antônio, das repartições públicas, das casas de modas, do comércio a
varejo, dos cinemas e das confeitarias, e da elegância da Rua Nova, cheia de
casas velhas. Casarões de três, quatro andares, pregados a meias-águas só de
andar térreo. O bairro da Boa Vista continua, com magros sobrados de varandas
de ferro espremidos pela Rua da Imperatriz abaixo.
Já São José tem um aspecto quase
suburbano, inteiramente diferente, com suas ruas atropeladas, enoveladas, com
suas casas em promiscuidade, com seus pequenos funcionários públicos de vida
apertada para parecer classe média, morando em casinha de porta e janela, e com
seu comércio de artigos baratos, com preços apregoados nas portas por árabes e
turcos. Ruas estreitas, becos, travessas. Confusão. O aperto da Rua Direita e
da Rua do Livramento. Cenário oriental. Mercado de miudezas e de chitas
vistosas pregadas nas fachadas das casas, de nomes ingenuamente deliciosos: A
Simpatia, A Magnólia, etc.
O Recife é todo esse mosaico de
cores, de cheiros e de sons. Nesse desadorado caos urbano, reflexo confuso da
fusão violenta de várias expressões culturais, só uma coisa tende a dar um
sentido estético próprio à cidade. A absorver e a anular os efeitos dos contrastes
desnorteadores, dando um selo inconfundível à cidade. É a paisagem natural que
a envolve. O seu mundo circundante, com seus acidentes geográficos e sua atmosfera
sempre em vibração, varada em todos os sentidos pelos reflexos da luz sobre as
águas.
Heródoto4 dizia que o
Egito era um dom do Nilo. Também o Recife é um dom dos seus rios. Das águas dos
seus rios encontrando as águas do mar, formando bancos de pedras – recifes. Rios
que deram origem à cidade e foram importantes fatores de sua história. Rios
nativistas, como os chamou Artur Orlando, que ajudaram a expulsar da pátria o
invasor holandês. Rios que vem de muito longe, disfarçando no acaso de seus
coleios, a ânsia de se encontrarem.
Já dentro da cidade, o Capibaribe
lança um braço para um lado, segue para outro lado, fazendo um cerco pro
Beberibe não escapar. Alcança-o logo adiante, e aí os dois rios se entrelaçam,
se confundem e afogam nas suas águas misturadas, esse prazer profundo de ânsias causadas pelas distâncias percorridas.
Recife, resumo das aventuras
heroicas de que os rios contaram e continuam contando, ao se encontrarem numa
praia do Atlântico. Recife: telhados, torres e cúpulas. Ondulações. Ruínas históricas.
Lendas portuguesas, holandesas e afro-brasileiras. Recife, azulejo lavado de
luz, à sombra dos coqueiros, boiando nas águas.
Cronica de Josué de Castro no livro Documentário do Nordeste de 1937.
Josué de Castro, nascido no Recife em 1908, médico, geógrafo, professor,
cientista social, político e embaixador, indicado quatro vezes para o Nobel da
Paz, foi ainda Presidente do Conselho Executivo da FAO.
1–Rudyard Kipling, escritor e poeta britânico, famoso por livros de
aventuras publicados no início do século XX, ambientados na África e Índia.
2-Paquete, antigo navio movido a vapor que encurtou as viagens entre a
Europa e as Américas, sendo alguns de alto luxo.
3-Essa era a antiga Praça Rio Branco, hoje Praça do Marco Zero.
4-Heródoto, nascido em 485 AC, geógrafo e historiador grego, é considerado o pai da historiografia.
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