sábado, 8 de dezembro de 2018

Josué Descreve o Recife


O Recife não é cidade duma só cor, nem dum só cheiro, como muitas encontradas por Kipling¹ em suas viagens, que depois as podia evocar admiravelmente num só adjetivo, expressão dum estado sensorial. Longe disto. Por seu arranjo arquitetônico, pela tonalidade própria de cada uma de suas ruas, o Recife é desconcertante, como unidade urbana, impossível mesmo de caracterizar-se. Casas de todos os estilos. Contrastes violentos nas cores gritantes das fachadas. Cidade feita de manchas locais diferentes, não há por onde se possa apanhar na fisionomia das casas o tom predominante da alma da cidade.

Quem diria que deste outro lado do Atlântico, no Brasil, país de mestiços e bem nos trópicos, o viajante iria topar com um espetáculo destes, logo no primeiro porto que o navio toca? Salta o viajante do paquete², desce ao longo dos armazéns e desemboca mesmo na praça monumental³. Cinco avenidas se abrindo em leque, com magníficos estabelecimentos comerciais. Ruas largas, limpas, retas, com as filas inquebrantáveis dos edifícios uniformemente solenes. Bancos, telégrafos, companhias de vapores... Prédios asseados com um ar de disciplina e de riqueza. É verdade que estas ruas são curtas, curtinhas mesmo, se acabando logo ali adiante na beira do rio. Mas quando elas se acabam, lá vem as pontes lançadas elegantemente sobre o Capibaribe. E depois outras praças: a da Independência e a da República, com seus palácios e palacetes, do Governo, da Justiça, do Diário de Pernambuco, todos feios, feiíssimos, mas também monumentais como grandes cidades europeias.

As pontes nos trazem ao bairro de Santo Antônio, das repartições públicas, das casas de modas, do comércio a varejo, dos cinemas e das confeitarias, e da elegância da Rua Nova, cheia de casas velhas. Casarões de três, quatro andares, pregados a meias-águas só de andar térreo. O bairro da Boa Vista continua, com magros sobrados de varandas de ferro espremidos pela Rua da Imperatriz abaixo.

Já São José tem um aspecto quase suburbano, inteiramente diferente, com suas ruas atropeladas, enoveladas, com suas casas em promiscuidade, com seus pequenos funcionários públicos de vida apertada para parecer classe média, morando em casinha de porta e janela, e com seu comércio de artigos baratos, com preços apregoados nas portas por árabes e turcos. Ruas estreitas, becos, travessas. Confusão. O aperto da Rua Direita e da Rua do Livramento. Cenário oriental. Mercado de miudezas e de chitas vistosas pregadas nas fachadas das casas, de nomes ingenuamente deliciosos: A Simpatia, A Magnólia, etc.

O Recife é todo esse mosaico de cores, de cheiros e de sons. Nesse desadorado caos urbano, reflexo confuso da fusão violenta de várias expressões culturais, só uma coisa tende a dar um sentido estético próprio à cidade. A absorver e a anular os efeitos dos contrastes desnorteadores, dando um selo inconfundível à cidade. É a paisagem natural que a envolve. O seu mundo circundante, com seus acidentes geográficos e sua atmosfera sempre em vibração, varada em todos os sentidos pelos reflexos da luz sobre as águas.

Heródoto4 dizia que o Egito era um dom do Nilo. Também o Recife é um dom dos seus rios. Das águas dos seus rios encontrando as águas do mar, formando bancos de pedras – recifes. Rios que deram origem à cidade e foram importantes fatores de sua história. Rios nativistas, como os chamou Artur Orlando, que ajudaram a expulsar da pátria o invasor holandês. Rios que vem de muito longe, disfarçando no acaso de seus coleios, a ânsia de se encontrarem.

Já dentro da cidade, o Capibaribe lança um braço para um lado, segue para outro lado, fazendo um cerco pro Beberibe não escapar. Alcança-o logo adiante, e aí os dois rios se entrelaçam, se confundem e afogam nas suas águas misturadas, esse prazer profundo de ânsias causadas pelas distâncias percorridas.

Recife, resumo das aventuras heroicas de que os rios contaram e continuam contando, ao se encontrarem numa praia do Atlântico. Recife: telhados, torres e cúpulas. Ondulações. Ruínas históricas. Lendas portuguesas, holandesas e afro-brasileiras. Recife, azulejo lavado de luz, à sombra dos coqueiros, boiando nas águas.

Cronica de Josué de Castro no livro Documentário do Nordeste de 1937.

Josué de Castro, nascido no Recife em 1908, médico, geógrafo, professor, cientista social, político e embaixador, indicado quatro vezes para o Nobel da Paz, foi ainda Presidente do Conselho Executivo da FAO.

1–Rudyard Kipling, escritor e poeta britânico, famoso por livros de aventuras publicados no início do século XX, ambientados na África e Índia.
2-Paquete, antigo navio movido a vapor que encurtou as viagens entre a Europa e as Américas, sendo alguns de alto luxo.
3-Essa era a antiga Praça Rio Branco, hoje Praça do Marco Zero.
4-Heródoto, nascido em 485 AC, geógrafo e historiador grego, é considerado o pai da historiografia.

sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Joaquim Nabuco Descreve o Recife


Servindo de cicerone ao escritor português Ramalho Ortigão, o abolicionista Joaquim Aurélio Barreto Nabuco faz uma apaixonada descrição da nossa terra no jornal O Paiz do Rio de Janeiro, N. 1151, edição de quarta-feira, 30 de novembro de 1887.

Voltando de Olinda, Ramalho Ortigão percorreu esta cidade, que é para elle, como para todos que a tem visitado, a mais bella do Brazil, e a sua impressão foi a mesma que tem o estrangeiro que aqui desembarca depois de ter estado no Rio e na Bahia. O que primeiro fere a vista no Recife é a limpeza da cidade, a brancura de toda ella.

Ve-se bem a cidade de um povo de rio, que vive n’agua, como o pernambucano. É um reflexo da Hollanda que brilha ainda aqui!

O Recife é com effeito uma Veneza, não pelos palácios de mármore do grande canal, que mostram, a meu ver, a mais bella phase da architectura da Renascença, não por essa praça de S. Marcos, que só tem uma rival no mundo, na praça da velha Pisa, com os quatro incomparáveis e solitários edifícios da sua gloria. O Recife não tem nada disso, mas como Veneza, é uma cidade que sahe d’agua e que nella se reflecte, é uma cidade que sente a palpitação do oceano no mais profundo dos seus recantos; como Veneza ella tem um ceo azul que parece lavado em suas aguas, como se lavam os navios de grandes nuvens brancas como toldos, como Veneza basta uma canção na agua e uma bandeira solta ao vento para dar-lhe um aspecto festivo e risonho, e por fim como Veneza, ella tem um passado que a corôa como uma aureola e que brilha ao luar sobre suas pontes, e as suas torres como a alma de uma nacionalidade morta!      

Melhor porem do que Veneza, os canaes do Recife são rios, a cidade sahe da agua doce e não da marezia das lagunas, o seu horizonte é amplo e descoberto, as sua pontes são compridas como terraços suspensos sobre a agua e o oceano vem se quebrar diante della em um lençol de espumas por sobre o extenso recife que a guarda, como uma trincheira, genuflexório imenso, onde o eterno aluidor da terra se ajoelhara ainda por séculos diante da graça frágil dos coqueiros!

Recife, novembro de 1887.


quinta-feira, 11 de outubro de 2018

O Sermão dos Escravos do Açúcar


“Destes devem ser mais devotos, e nestes se devem mais exercitar, acompanhando a Cristo neles, como fez São João na sua Cruz. Mas, assim como entre todos os mistérios do Rosário estes são os que mais propriamente pertencem aos pretos, assim entre todos os pretos os que mais particularmente os devem imitar e meditar são os que servem e trabalham nos engenhos, pela semelhança e rigor do mesmo trabalho.

Encarecendo o mesmo Redentor o muito que padeceu em sua sagrada Paixão, que são os mistérios dolorosos, compara as suas dores às penas do inferno: Dolores inferni circumdederunt me (As dores do inferno me cercam). - E que coisa há na confusão deste mundo mais semelhante ao inferno que qualquer destes vossos engenhos, e tanto mais quanto de maior fábrica? Por isso foi tão bem recebida aquela breve e discreta definição de quem chamou a um engenho de açúcar doce inferno.

E, verdadeiramente, quem vir na escuridade da noite aquelas fornalhas tremendas perpetuamente ardentes; as labaredas que estão saindo a borbotões de cada uma, pelas duas bocas ou ventas por onde respiram o incêndio; os etíopes ou ciclopes banhados em suor, tão negros como robustos, que soministram a grossa e dura matéria ao fogo, e os forcados com que o revolvem e atiçam; as caldeiras, ou lagos ferventes, com os cachões sempre batidos e rebatidos, já vomitando escumas, já exalando nuvens de vapores mais de calor que de fumo, e tornando-os a chover para outra vez os exalar; o ruído das rodas, das cadeias, da gente toda da cor da mesma noite, trabalhando vivamente, e gemendo tudo ao mesmo tempo, sem momento de tréguas nem de descanso; quem vir, enfim, toda a máquina e aparato confuso e estrondoso daquela Babilônia, não poderá duvidar, ainda que tenha visto Etnas e Vesúvios, que é uma semelhança de inferno.

Mas, se entre todo esse ruído, as vozes que se ouvirem forem as do Rosário, orando e meditando os mistérios dolorosos, todo esse inferno se converterá em paraíso, o ruído em harmonia celestial, e os homens, posto que pretos, em anjos.”


Padre Antônio Vieira       
Sermão XIV do Rosário, 1633

sábado, 6 de outubro de 2018

Gaspar Dias Ferreira


No dia 11 de maio de 1644 o Conde de Nassau deixa Mauritsstad com sua comitiva e segue para a Paraíba, de onde embarcaria em Cabedelo de volta à Europa.

Dentre as diversas pessoas que o acompanharam, inclusive alguns índios, estava o português Gaspar Dias Ferreira, seu secretário. Ferreira, cristão-novo nascido em Lisboa, viera ao Brasil em 1614, estabelecendo-se como comerciante, com vários armazéns no porto do Recife.

Em 1630 os holandeses invadem Olinda e o Recife através de uma expedição da WIC – Companhia das Índias Ocidentais. Gaspar Dias Ferreira é muito prejudicado pela guerra que se estabelece em Pernambuco e capitanias vizinhas que paralisa os negócios.

Insatisfeitos com o desenrolar dos acontecimentos na conquista, os Heeren XIX, conselho diretor da WIC, em conjunto com os Estados Gerais, decidem enviar ao Brasil holandês o Conde Johann Moritz von Nassau-Siegen como governador e Capitão Geral de Terra e Mar com plenos poderes para administrar e fazer a guerra contra os portugueses.

Chegando ao Recife em janeiro de 1637 Nassau contrata Ferreira como seu conselheiro, inclusive no trato com os judeus. Por influência de Nassau, Ferreira vai tornando-se cada vez mais poderoso e envolvido em toda sorte de negócios, honestos ou não, conseguindo comprar dois dos engenhos de açúcar confiscados pelos holandeses. Tornou-se uma espécie de procurador geral do Conde.

A Companhia das Índias Ocidentais desaprova cada vez mais os gastos crescentes de Nassau com atividades sem importância aos olhos dos seus diretores. No dia 30 de setembro de 1643 o Conde Maurício de Nassau recebe o comunicado de sua dispensa do cargo de governador da Nova Holanda. Gaspar Dias Ferreira já havia percebido que os neerlandeses não conseguiriam manter suas conquistas no Brasil após o retorno de Nassau à Europa e decide acompanhar seu protetor.

Nassau chega à Holanda e apresenta relatório aos Estados Gerais mostrando a difícil situação da conquista no Brasil, enfatizando a necessidade de investimento para manutenção dos territórios. No início de 1645 Gaspar Dias Ferreira consegue a cidadania neerlandesa.

Ferreira intencionava manter seus negócios no Brasil e em 20 de julho de 1645 envia uma carta ao Rei D. João IV descrevendo as riquezas brasileiras e o muito que representavam para a Coroa lusitana. Seu plano era que Portugal pagasse uma indenização às Províncias Unidas dos Países Baixos para reaver os territórios perdidos na invasão. No entanto, sua boa sorte acaba um mês depois, quando em um navio apresado pela WIC com destino a Portugal são encontradas cartas dele ao Rei português tratando da negociação para devolução da Nova Holanda a Portugal.

Em 26 de outubro Gaspar Dias Ferreira é preso na Holanda acusado de alta traição. Seu julgamento é realizado em maio de 1646 e ele é condenado a sete anos de trabalhos forçados e multa de 12 mil florins. Após cumprir a sentença seria deportado dos Países Baixos. No entanto, usando de sua influência e dinheiro, Ferreira consegue fugir da prisão em 1649 subornando a guarda da prisão e seguindo para Portugal.

Em sua terra natal, Gaspar Dias Ferreira continua a tirar proveito de suas relações com pessoas da Coroa, passando a ser conselheiro do Rei e posteriormente cavaleiro da Ordem de Cristo e da Casa Real. Faleceu em 1656.


segunda-feira, 16 de julho de 2018

Roteiro Geral da Costa Brasílica

Do rio de Igaruçu ao porto da vila de Olinda são quatro léguas, e está em altura de oito graus. Neste porto de Olinda [Recife] se entra pela boca de um arrecife de pedra ao su-sudoeste e depois norte-sul; e, entrando para dentro ao longo do arrecife, fica o rio Morto, pelo qual entram até acima navios de 100 tonéis até 200, tomam meia carga em cima e acabam de carregar onde chamam "o Poço", defronte da boca do arrecife, onde convém que os navios estejam bem amarrados, porque trabalham aqui muito por andar neste porto sempre o mar de levadio; por esta boca entra o salgado pela terra dentro uma légua ao pé da vila; e defronte do surgidouro dos navios faz este rio outra volta deixando no meio uma ponta de areia onde está uma ermida do Corpo Santo.

Neste lugar vivem alguns pescadores e oficiais da ribeira, e estão alguns armazéns em que os mercadores agasalham os açúcares e outras mercadorias; e desta ponta da areia da banda de dentro se navega este rio até o varadouro, que está ao pé da vila, com caravelões e barcos, e do varadouro para cima se navega com barcos de navios obra de meia légua, onde se faz aguada fresca para as naus da ribeira que vem do engenho de Jerônimo de Albuquerque; também se metem neste rio outras ribeiras por onde vão os barcos dos navios a buscar os açúcares aos paços onde os trazem encaixados e em carros; este esteiro e limite do arrecife é muito farto de peixe de redes que por aqui pescam e do marisco; perto de uma légua da boca deste arrecife está outro boqueirão, que chamam a Barreta, por onde podem entrar barcos pequenos estando o mar bonançoso.

Desta Barreta por diante corre este arrecife ao longo da terra duas léguas, e entre ela e ele se navega com barcos pequenos que vêm do mar em fora, e quem puser os olhos na terra em que está situada esta vila, parecer-lheá que é o cabo de Santo Agostinho, por ser muito semelhante a ele.

Tratado Descritivo do Brasil em 1587
Capítulo XV
Gabriel Soares de Sousa

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

A Bacia Que Atravessou o Atlântico Três Vezes

Existe na Igreja Evangélica de Siegen, centro-oeste da Alemanha, uma bacia dourada que serve de pia batismal. O objeto mede cerca de 50 cm de diâmetro por 12 cm de fundo.

O Conde Maurício de Nassau recebeu essa bacia como presente quando da visita de uma delegação do Rei do Congo, D. Garcia II, ao Recife em 1643. Os africanos buscavam a intermediação de Nassau para disputa com o Conde de Sonho (Mani Sonho) também do Congo, que enviou seus embaixadores ao Recife, pouco depois. A região do Sonho foi a primeira a manter contato com os portugueses em 1483 por ser um porto importante na foz do Rio Congo.

Em 1956, o historiador e arqueólogo alemão Friedrich Muthmann determinou, por comparação, que a bacia era originária da região de Cuzco, Peru, datando a peça por volta de 1580. Tinha sido produzida em prata, principal riqueza explorada pelos espanhóis no Novo Mundo. Segundo a Dra. Mariana Françozo, a peça deve ter sido usada como pagamento no tráfico de escravos pelos portugueses e assim chegou a Angola, na costa ocidental africana.

Descomissionado pela Companhia das Índias Ocidentais do seu cargo de governador do Brasil holandês, o Conde Maurício de Nassau volta à Europa em 1644, levando entre seus tesouros e curiosidades a bacia de prata peruana.

Elevado a Príncipe do Sacro Império Romano-Germânico em 1653, Maurício de Nassau viajou para Frankfurt em 1658 como representante do Grande Eleitor de Brandenburgo, Friedrich Wilhelm. Lá, encaminhou a bacia de prata ao ourives Hans Georg Bauch, encomendando-lhe que a revestisse de ouro e que adaptasse um pedestal, além de inserir no centro da peça o brasão de armas de Nassau.


Depois de pronta, a bacia foi doada pelo Conde Maurício de Nassau para a Igreja Evangélica de Siegen, onde permanece até hoje. A bacia, além do brasão de Nassau, possui em sua borda de 6,5 cm diversas figuras de animais, pessoas, prédios e plantas. Essa curiosa peça, originária da América andina, cruzou toda a América do Sul para ser enviada através do Atlântico sul para a África ocidental. Daí, volta, pelo mesmo oceano, para o Recife no litoral nordeste do Brasil. Por fim, cruza o Oceano Atlântico pela terceira vez, agora até o norte da Europa. Observam-se assim os caminhos dos interesses políticos e comerciais das potências do século XVII na parte ocidental do mundo.