quinta-feira, 11 de outubro de 2018

O Sermão dos Escravos do Açúcar


“Destes devem ser mais devotos, e nestes se devem mais exercitar, acompanhando a Cristo neles, como fez São João na sua Cruz. Mas, assim como entre todos os mistérios do Rosário estes são os que mais propriamente pertencem aos pretos, assim entre todos os pretos os que mais particularmente os devem imitar e meditar são os que servem e trabalham nos engenhos, pela semelhança e rigor do mesmo trabalho.

Encarecendo o mesmo Redentor o muito que padeceu em sua sagrada Paixão, que são os mistérios dolorosos, compara as suas dores às penas do inferno: Dolores inferni circumdederunt me (As dores do inferno me cercam). - E que coisa há na confusão deste mundo mais semelhante ao inferno que qualquer destes vossos engenhos, e tanto mais quanto de maior fábrica? Por isso foi tão bem recebida aquela breve e discreta definição de quem chamou a um engenho de açúcar doce inferno.

E, verdadeiramente, quem vir na escuridade da noite aquelas fornalhas tremendas perpetuamente ardentes; as labaredas que estão saindo a borbotões de cada uma, pelas duas bocas ou ventas por onde respiram o incêndio; os etíopes ou ciclopes banhados em suor, tão negros como robustos, que soministram a grossa e dura matéria ao fogo, e os forcados com que o revolvem e atiçam; as caldeiras, ou lagos ferventes, com os cachões sempre batidos e rebatidos, já vomitando escumas, já exalando nuvens de vapores mais de calor que de fumo, e tornando-os a chover para outra vez os exalar; o ruído das rodas, das cadeias, da gente toda da cor da mesma noite, trabalhando vivamente, e gemendo tudo ao mesmo tempo, sem momento de tréguas nem de descanso; quem vir, enfim, toda a máquina e aparato confuso e estrondoso daquela Babilônia, não poderá duvidar, ainda que tenha visto Etnas e Vesúvios, que é uma semelhança de inferno.

Mas, se entre todo esse ruído, as vozes que se ouvirem forem as do Rosário, orando e meditando os mistérios dolorosos, todo esse inferno se converterá em paraíso, o ruído em harmonia celestial, e os homens, posto que pretos, em anjos.”


Padre Antônio Vieira       
Sermão XIV do Rosário, 1633

sábado, 6 de outubro de 2018

Gaspar Dias Ferreira


No dia 11 de maio de 1644 o Conde de Nassau deixa Mauritsstad com sua comitiva e segue para a Paraíba, de onde embarcaria em Cabedelo de volta à Europa.

Dentre as diversas pessoas que o acompanharam, inclusive alguns índios, estava o português Gaspar Dias Ferreira, seu secretário. Ferreira, cristão-novo nascido em Lisboa, viera ao Brasil em 1614, estabelecendo-se como comerciante, com vários armazéns no porto do Recife.

Em 1630 os holandeses invadem Olinda e o Recife através de uma expedição da WIC – Companhia das Índias Ocidentais. Gaspar Dias Ferreira é muito prejudicado pela guerra que se estabelece em Pernambuco e capitanias vizinhas que paralisa os negócios.

Insatisfeitos com o desenrolar dos acontecimentos na conquista, os Heeren XIX, conselho diretor da WIC, em conjunto com os Estados Gerais, decidem enviar ao Brasil holandês o Conde Johann Moritz von Nassau-Siegen como governador e Capitão Geral de Terra e Mar com plenos poderes para administrar e fazer a guerra contra os portugueses.

Chegando ao Recife em janeiro de 1637 Nassau contrata Ferreira como seu conselheiro, inclusive no trato com os judeus. Por influência de Nassau, Ferreira vai tornando-se cada vez mais poderoso e envolvido em toda sorte de negócios, honestos ou não, conseguindo comprar dois dos engenhos de açúcar confiscados pelos holandeses. Tornou-se uma espécie de procurador geral do Conde.

A Companhia das Índias Ocidentais desaprova cada vez mais os gastos crescentes de Nassau com atividades sem importância aos olhos dos seus diretores. No dia 30 de setembro de 1643 o Conde Maurício de Nassau recebe o comunicado de sua dispensa do cargo de governador da Nova Holanda. Gaspar Dias Ferreira já havia percebido que os neerlandeses não conseguiriam manter suas conquistas no Brasil após o retorno de Nassau à Europa e decide acompanhar seu protetor.

Nassau chega à Holanda e apresenta relatório aos Estados Gerais mostrando a difícil situação da conquista no Brasil, enfatizando a necessidade de investimento para manutenção dos territórios. No início de 1645 Gaspar Dias Ferreira consegue a cidadania neerlandesa.

Ferreira intencionava manter seus negócios no Brasil e em 20 de julho de 1645 envia uma carta ao Rei D. João IV descrevendo as riquezas brasileiras e o muito que representavam para a Coroa lusitana. Seu plano era que Portugal pagasse uma indenização às Províncias Unidas dos Países Baixos para reaver os territórios perdidos na invasão. No entanto, sua boa sorte acaba um mês depois, quando em um navio apresado pela WIC com destino a Portugal são encontradas cartas dele ao Rei português tratando da negociação para devolução da Nova Holanda a Portugal.

Em 26 de outubro Gaspar Dias Ferreira é preso na Holanda acusado de alta traição. Seu julgamento é realizado em maio de 1646 e ele é condenado a sete anos de trabalhos forçados e multa de 12 mil florins. Após cumprir a sentença seria deportado dos Países Baixos. No entanto, usando de sua influência e dinheiro, Ferreira consegue fugir da prisão em 1649 subornando a guarda da prisão e seguindo para Portugal.

Em sua terra natal, Gaspar Dias Ferreira continua a tirar proveito de suas relações com pessoas da Coroa, passando a ser conselheiro do Rei e posteriormente cavaleiro da Ordem de Cristo e da Casa Real. Faleceu em 1656.